segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Doença de Chagas: É hora de romper o silêncio



Artigo publicado na Folha de São Paulo

David Oliveira de Souza

Há 100 anos, o médico brasileiro Carlos Ribeiro Justiniano das Chagas realizou feito científico inédito: descreveu sozinho uma enfermidade, seu parasita causador e o inseto que a transmitia. Se a descoberta da doença de Chagas é motivo de orgulho, os pacientes ainda têm pouco para comemorar. Um século depois, a doença ainda é uma tragédia silenciosa que atinge milhões de pessoas na América Latina.

O conhecimento da dinâmica da doença de Chagas é muito importante, pois ajuda a compreender o que se passa com outras enfermidades também negligenciadas. Chagas, malária, leishmaniose e tuberculose, para citar só algumas, têm em comum o fato de atingirem, sobretudo os pobres, receberem pouquíssimas inovações tecnológicas e partilharem o amplo desinteresse da indústria farmacêutica. Os pacientes dessas patologias não representam um mercado atraente para o consumo de novos medicamentos ou testes diagnósticos.

Estima-se que 3 milhões de brasileiros estejam infectados pelo Trypanossoma cruzi, o protozoário causador da doença. Muitos deles desconhecem completamente sua condição de saúde. É que a doença de Chagas é silenciosa e costuma se manifestar muitos anos após o momento em que o parasita invade o organismo. Frequentemente, quando o tratamento já não é mais possível.

Um terço das pessoas infectadas desenvolverá a doença. Muitas delas vivem hoje nas periferias dos centros urbanos, mas, na juventude, dormiam em casas de taipa em cujas frestas se abrigava o barbeiro. Podem também ter se infectado por transfusão sanguínea, alimentos contaminados ou dentro do útero de suas mães. Receberão o diagnóstico num momento qualquer da vida, quando forem doar sangue, fazer acompanhamento pré-natal ou desmaiarem com arritmia cardíaca na via pública. Algumas precisarão de marca-passo e até de transplante cardíaco, outras morrerão sem sequer saber o nome da doença que tinham.

Em 2006, o Brasil recebeu da Organização Pan-Americana da Saúde o certificado internacional reconhecendo que a transmissão da doença pelo barbeiro estava eliminada em território nacional. Uma conquista necessária, mas não suficiente. Nesse momento, muitas pessoas já estavam infectadas - para elas, a prevenção não resolve. É necessário acesso a diagnóstico e tratamento.

Recentemente, visitamos dois pacientes que são membros da associação de pessoas vivendo com doença de Chagas ligada ao hospital Dante Pazzanese. Os irmãos Mildo e Dildo nos receberam em sua casa, pegaram uma foto bonita de sua família reunida e apontaram o pai, a mãe e vários irmãos. Com tristeza, informaram que quase todos morreram com Chagas. Muitas doenças negligenciadas devastam uma mesma família não por sua identidade genética, mas por sua condição social compartilhada.

Hoje, dia do aniversário de Carlos Chagas e ano do centenário de seu importante descobrimento, a organização humanitária Médicos Sem Fronteiras (MSF) lança a campanha internacional "Doença de Chagas: é hora de romper o silêncio". MSF apela para que governos parem de considerar pacientes de Chagas como casos perdidos e procurem saber onde estão essas pessoas que adoecem em silêncio. Elas precisam de diagnóstico e talvez de tratamento. MSF trabalha em projetos de luta contra essa doença desde de 1999.

Atualmente, na Bolívia, o país com maior prevalência da doença, há mais estimativas que estatísticas precisas sobre o número de pessoas vivendo com Chagas. O curso silencioso da doença não é justificativa aceitável para esse desconhecimento. A infecção pelo vírus HIV também cursa de forma silenciosa até que apareçam as primeiras infecções oportunistas, mas sabemos com bem mais acuidade o número de soropositivos. Ademais, desde o descobrimento da Aids, há poucas décadas, muito já se avançou em termos de técnicas diagnósticas e novos medicamentos.

No caso de Chagas, os dois únicos medicamentos disponíveis são os mesmos há 30 anos e têm efeitos colaterais potencialmente graves. Os testes rápidos são limitados e o diagnóstico depende de estrutura laboratorial complexa, frequentemente inacessível para muitas regiões.

Alguns fatos alimentam a esperança de transformação no contexto de negligência vivido pelos pacientes com Chagas. Instituições de excelência, como a Fiocruz e a Iniciativa Medicamentos para Doenças Negligenciadas (DNDi), investem recursos relevantes na pesquisa da doença e na busca por melhores medicamentos. Associações de pacientes têm se formado no Brasil e em vários países, buscando ampliar a visibilidade desse mal silencioso.

Apesar dos pequenos avanços, a frase proferida por Carlos Chagas no distante ano de 1911 continua atualíssima: "A doença de Chagas é um problema de Estado a exigir enérgica ação governamental".

Um olhar sobre a Doença de Chagas


 
Cem Anos
de negligência
No centenário da descoberta de Carlos Chagas, pouco se pode comemorar no combate ao mal que ainda se espalha por regiões pobres do planeta


Artigo publicado na Scientific American Brasil por David Oliveira de Souza e Gabriela Costa Chaves

Fale dessa doença e terá todos contra você", alertava o cientista Carlos Ribeiro Justiniano das Chagas, referindo-se à doença por ele descoberta em 1909. Talvez o médico já intu­ísse que a doença de Chagas entraria para o grupo de enfermidades esquecidas e negligenciadas, por causa da estreita relação da patologia com a pobreza e a vida rural. "Esta doença é um proble­ma de Estado a exigir enérgica ação governamen­tal", advertia o cientista já em 1911.
Carlos Chagas estava certo. Um século depois, estima-se a existência de 13 milhões de pessoas que desconhecem estar infectadas pelo Trypanosoma cruzi. Podem morrer em silêncio, sem ajuda e sem saber a causa do mal. Se antes a doença de Chagas estava restrita a áreas endêmicas das Amé­ricas, agora, com o aumento da mobilidade popu­lacional, espalha-se pelo planeta.
Os dois únicos medicamentos disponíveis para o tratamento etiológico são os mesmos há quase 40 anos, com indicação limitada a algumas for­mas da doença e efeitos adversos potencialmente graves. Há testes diagnósticos, mas ainda limita­dos e não amplamente acessíveis. Segundo con­senso de recente encontro promovido pela Orga­nização Pan-Americana da Saúde (Opas) entre universidades da América Latina, a maioria das escolas médicas dedica pouquíssimas horas ao ensino da doença de Chagas e muitos clínicos nem mesmo a incluem em seus diagnósticos diferen­ciais. A descoberta da doença de Chagas faz cem anos, mas ainda há pouco para comemorar.
A organização Médicos Sem Fronteiras (MSF) atende a pacientes com Chagas desde 1999. Pro­jetos foram montados em Honduras, Guatemala, Nicarágua e Bolívia, onde prosseguimos até hoje em áreas urbanas. Os principais pilares da abor­dagem da doença são: informação, controle, diag­nóstico e tratamento.
A falta de informação é um problema grave. A população até conhece o barbeiro, mas sabe pouco sobre a doença. Por isso, procuramos usar os meios disponíveis corno rádio, teatro, clínicas móveis e treinamentos para ensinar a correlação entre o con­tato com o inseto e as possibilidades de adoecer.
Diagnóstico Detalhado
De pouco adianta informação sem controle. As equipes de MSF na Bolívia, que seguem de casa em casa procurando as vinchucas (barbeiro, em espa­nhol) e seus ninhos, aproveitam para indicar refor­mas na casa, como frestas a fechar e galinheiros a limpar, já que são locais onde os barbeiros costu­mam viver. Outras equipes dedetizam as casas e retornam de tempos em tempos para checar se não houve reinfestação.
O diagnóstico de Chagas não é simples. Uma pequena amostra de sangue é extraída do dedo dos pacientes e colocada no kit de exame rápido para triagem. Espera-se 15 minutos e, se o resultado for positivo, novas amostras de sangue são coletadas e enviadas para testes mais detalhados em laborató­rio. Até dezembro de 2008 já tínhamos realizado mais de 60 mil testes em crianças menores de 18 anos. Mais de 3 mil estavam infectadas.
De forma geral, os governos têm priorizado as ações de prevenção às de diagnóstico e tratamen­to da doença. O desenvolvimento de novos fármacos e métodos diagnósticos tampouco é conside­rado atraente pela indústria farmacêutica, pois se trata de uma população de países em desenvolvi­mento, com baixo poder aquisitivo.
Sintomas Genéricos
             Apesar de estarem disponíveis apenas dois medi­camentos, o benznidazol e o nifurtimox, a orga­nização MSF tem demonstrado ser possível tra­tar a doença de Chagas. Em nossos projetos, fina­lizou-se com êxito o tratamento de jovens até 18 anos em 90% dos casos. Isso é possível graças a acompanhamentos semanais feitos pela equipe de MSF com os pacientes e à atuação de nossas clínicas móveis em áreas remotas. A partir de 2008, a organização também passou a tratar adultos de até 50 anos.
Clinicamente, a doença de Chagas pode se clas­sificar em fases aguda e crônica - esta última da for­ma indeterminada ou clínica. É difícil diagnosticar os casos de Chagas na fase aguda, que ocorre logo após a infecção, pois os sintomas são muito leves e genéricos ou não existem. O diagnóstico fica mais fácil quando estão presentes os clássicos sinais de Romana (edema nas pálpebras de um dos olhos) ou o chagoma subcutâneo (lesão endurecida na pele), ambos indicando sítios de inoculação recente do parasita no organismo. Pacientes agudos até podem apresentar alterações neurológicas e cardiovasculares graves, mas são muito raras.
Na fase crônica, forma indeterminada, a pessoa já se infectou há algum tempo e pode transmitir a doença por diversos meios. A presença do parasita é comprovada pelo exame de sorologia, mas este é o único achado. O paciente não tem queixas car­díacas ou digestivas, nem alterações na radiografia ou no eletrocardiograma. Muitos desses indivídu­os, por não se sentirem doentes, ficarão sem diag­nóstico. Estima-se que um terço das pessoas infectadas com o Trypanosoma cruzi apresentará complicações clínicas em algum momento da vida e evo­luirá da forma indeterminada para a forma clínica. Os sintomas costu­mam aparecer após dez a 20 anos de infecção silenciosa.
Na forma clínica da fase crônica, quando há doença visível, podem aparecer sinais e sintomas cardíacos, digestivos ou neurológicos. Há lesões irreversíveis, afetando órgãos inter­nos, como coração, esôfago e intesti­nos, além do sistema nervoso perifé­rico. Os sintomas que sugerem ao médico o diag­nóstico de Chagas podem ser genéricos - de palpitações e desmaios a falta de ar, de dificuldade para engolir a constipação intestinal. Por isso é tão importante que a doença de Chagas esteja presente na formulação dos diagnósticos diferenciais dos profissionais de saúde.
Picando o Rosto
Carlos Chagas iniciou seus estudos de medicina em abril de 1887, em um momento de grande efer­vescência no Rio de Janeiro. Várias epidemias na zona portuária e no centro da cidade causavam prejuízos à economia, muito concentrada na exportação de produtos agrícolas. Na Europa havia grande interesse nos estudos da medicina tropical, sobretudo na busca por melhor entender as doenças encontradas nas colônias da África, como a malária e a tripanossomíase africana, tam­bém conhecida como doença do sono.
Em 1907, Carlos Chagas foi convidado por Oswaldo Cruz, Diretor-Geral de Saúde Pública, para controlar uma epidemia de malária, que vinha matando muitos trabalhadores da constru­ção de uma ferrovia em Lassance, Minas Gerais. Curioso pelo estudo dos insetos e protozoários enquanto atuava na malária, Chagas identificou no sangue de um sagüi um protozoário do gênero Trypanosoma. Nos dias seguintes, um dos traba­lhadores da ferrovia mostrou ao cientista um hemíptero que se alimentava de sangue e podia ser encontrado em várias choupanas da área. O inse­to era chamado de barbeiro pela população por­que costumava picar o rosto das pessoas durante o sono. O barbeiro podia ser facilmente encontra­do nas frestas das paredes das casas de barro e vivia em íntimo contato com as famílias. Em suas investigações, Chagas encontrou no intestino do inseto o mesmo protozoário que achara no sagüi e viria a ser denominado Trypanosoma cruzi, em homenagem ao mestre e amigo Oswaldo Cruz.
Percebendo a proximidade do barbeiro com domicílios humanos e sua capacidade de transmitir o Trypa­nosoma a mamíferos vertebrados, como o sagüi, Chagas decidiu reali­zar exames sistemáticos no sangue de moradores e de animais domésti­cos da região. Em abril de 1909, há cem anos, portanto, foi identificado o primeiro caso da doença de Cha­gas em humanos. A menina Berenice, de 2 anos, tinha febre e o Trypanoso­ma cruzi no sangue. Mais tarde se registrariam muitos outros casos agudos da infecção, com grande repercussão inter­nacional. O feito de Carlos Chagas foi único na his­tória da medicina, pois em pouco tempo e pelo mes­mo cientista foram descritos a doença, o seu vetor transmissor e o parasita infectante.
Basta passar um dia no movimentado ambula­tório de doença de Chagas da Universidade de Per­nambuco (Procape-UPE) para ter idéia do quanto esta doença é atual e negligenciada. Atual pelo grande número de pessoas que ainda se descobrem infectadas tardiamente, apenas quando surgem os sintomas. Negligenciada porque, embora o conhe­cimento sobre a doença tenha evoluído ao longo desses cem anos, isso não se traduziu em ferramen­tas essenciais para o enfrentamento da doença.
Numa visita de MSF ao Recife, uma pista para ajudar a explicar essa situação nos foi dada por Manoel Nascimento, presidente da associação de pessoas vivendo com doença de Chagas ligada ao hospital da universidade. Ele explica que os pacientes pernambucanos "costumam acordar nas primeiras horas da madrugada para conseguir chegar ao Recife a tempo. Até desmaios já acon­teceram na sala de espera por causa de fome".
Uma das principais funções da associação é apoiar pacientes mais pobres, fornecendo inclusi­ve alimentação, transporte e medicamentos. Na fase crônica, às vezes se torna necessário o uso diá­rio de três ou quatro medicamentos, cuja aquisi­ção pelos pacientes pode ser inviável. Por causa desse contexto de vulnerabilidade, os movimentos de criação de associações como em Recife, São Paulo e Campinas vêm se multiplicando cada vez mais e as redes entre elas vêm se desenvolvendo.
Para MSF, é prioritário apoiar essas iniciativas. Assim como no caso da AIDS, exemplo de sucesso em muitos locais, a atuação da sociedade civil pode representar um poderoso capital de transfor­mação da realidade. Em relação a Chagas, a situa­ção é ainda mais desafiadora, pois o investimento é muito menor. É o próprio Manoel que formula uma hipótese para explicar essa diferença: "A AIDS pega pobre e pega rico, mas Chagas quase só é doença de pobre".
Doença Globalizada
      Ao longo dos últimos dez anos de experiência de MSF com doença de Chagas, pudemos perceber ainda a característica familiar da doença, resultado da exposição comum aos ambientes de risco. Maria Rodrigues, também do ambulatório de Chagas de Pernambuco, diz ter cinco dos 11 irmãos com doen­ça de Chagas. Seus pais morreram por um "proble­ma do coração". Como a família se dispersou, alguns irmãos são atendidos por serviços médicos de outras cidades do Brasil. Esse também é o caso de alguns pacientes bolivianos acompanhados pelo ambulatório de Chagas do Hospital Dante Pazzanese em São Paulo, mas infectados em suas cidades de origem na Bolívia. Contextos assim podem ser vistos nos Estados Unidos, Austrália, Japão e Euro­pa, em virtude de migração e mobilidade de pes­soas, tornando a doença de Chagas globalizada.
Uma das principais razões da proximidade físi­ca do barbeiro com o homem foi a invasão de espaços ecológicos antes inabitados. Com a der­rubada das florestas, reduziu-se a oferta de ali­mentos para os insetos, que se deslocaram para regiões habitadas onde também há criações de animais. Os barbeiros procuram procriar e viver nas frestas de moradias rurais, geralmente feitas de taipa, com telhados de piaçava ou palha, sob colchões, em pilhas de lenha, em locais úmidos e mal iluminados. Adquirem o Trypanosoma ao sugarem o sangue de mamíferos silvestres, como gambás, roedores ou o próprio homem. Durante o dia, costumam permanecer escondidos, saindo à noite em busca de alimento. Sua picada é pouco dolorosa e, por isso, não encontram problemas para se alimentar. Mas não é a picada do barbeiro que transmite o parasita. Depois de se alimentar, o barbeiro defeca e como há uma leve ardência ou coceira no local afetado, o ato de cocar introduz os tripanossomídeos das fezes do inseto no orga­nismo, causando assim a infecção.
O controle do vetor transmissor é um elemen­to essencial no combate à doença de Chagas. Pode ser feito por meio do uso de inseticidas nas resi­dências, da manutenção de uma higiene adequada nas casas e principalmente com a construção de casas menos atraentes ao barbeiro. Todas essas medidas devem ter como pano de fundo o respei­to às pessoas, utilizando-se inseticidas de baixa toxicidade e adequando as novas casas ao padrão cultural daquelas populações.
No caso do Brasil, em junho de 2006 a OPAS concedeu ao Ministério da Saúde a Certificação Internacional de Eliminação da Transmissão da Doença de Chagas pelo Triatoma infestans, prin­cipal vetor das áreas endêmicas no país. É uma boa notícia, mas seria um equívoco achar que a doença se manterá controlada apenas com a eli­minação da transmissão por um tipo de vetor. Eli­minação significa uma interrupção momentânea da transmissão, diferente da erradicação - que seria a interrupção definitiva. Por isso, se não hou­ver ações de vigilância entomológica e epidemiológica continuadas no país, a transmissão pode voltar a ser um problema.
     Não é só a transmissão por insetos que deman­da controle. A doença de Chagas também pode ser transmitida de várias formas: por via oral, por meio de alimentos contaminados; por acidentes em que haja contato de mucosas com material infectado; por transmissão vertical ao feto duran­te a gravidez e por transfusão sanguínea. Cada uma dessas formas de transmissão demanda medidas de controle específicas, como o proces­samento adequado de alimentos, uso de luvas em procedimentos de risco, triagem da gestante no pré-natal e de doadores de sangue na transfusão. A transmissão por via oral merece especial atenção, pois tem sido cada vez mais observada e já foi identificada como responsável pela ocorrên­cia de diversos surtos no Brasil. Aqui, relacionou-se a transmissão ao consumo de açaí na região amazônica, mas houve também casos associados ao caldo de cana e a outros alimentos em diversas áreas. A transmissão oral não está relacionada ao alimento ingerido, mas a seu processamento ina­dequado. Por isso, não há problema em consumir o açaí ou caldo de cana processados de forma segura para o consumidor.
Apesar do relativo êxito obtido no controle de transmissão da doença de Chagas em alguns paí­ses, para milhões de pessoas esse sucesso não che­gou a tempo. Elas já estavam infectadas. Muitas ainda não sabem que vivem com o parasita que pode provocar uma doença crônica com prognós­tico sombrio. Para essas pessoas, o acesso ao diag­nóstico e tratamento imediatos é essencial. O diag­nóstico da doença de Chagas pode ser feito na fase aguda, principalmente pela observação direta do parasita no sangue e, na fase crônica, por testes sorológicos ou pela identificação de problemas clí­nicos decorrentes da infecção.
Para a fase aguda, pode-se até mesmo aprovei­tar a realização de outros exames em sangue fres­co, como o hemograma ou a busca do Plasmodium da malária, para tentar verificar também a presença ou não do Trypanosoma no sangue do paciente. A região amazônica é um bom exemplo. Como a rede de vigilância de malária é ampla e já está bem consolidada na região, esse se torna um método barato e fácil, que permite ampliar o siste­ma de vigilância da doença de Chagas no territó­rio. Em 2007, Médicos Sem Fronteiras, em parce­ria com a Fiocruz, capacitou rnicroscopistas para essa técnica em todos os estados amazônicos. O resultado foi a detecção de surto de doença de Cha­gas em áreas onde se desconhecia sua presença.
 
IMPORTÂNCIA DA SOROLOGIA
        Na forma indeterminada, como o indivíduo não apresenta sinais ou sintomas que permitam supor a existência da infecção, a sorologia acaba sendo o principal método diagnóstico. Não podemos esquecer que a cardiomiopatia chagásica é a prin­cipal causa de morte por doença cardiovascular em áreas endêmicas de Chagas. Por essa razão, MSF defende o acesso a diagnóstico rápido e tra­tamento para doença de Chagas ainda no âmbito da atenção primária.
Em relação à terapêutica, as recomendações internacionais têm indicado o tratamento da infec­ção em crianças de até 15 anos, porque há evidências de cura parasitológica na maioria dos casos agudos. Apesar de ainda não existir nenhum estudo duplo-cego, randomizado e controlado que forneça maior nível de evidência, alguns trabalhos têm demonstra­do que tratar adultos na fase crônica da infecção com benznidazol pode retardar a progressão da doença cardíaca. Por essa razão, em 2008, MSF deci­diu iniciar de forma pioneira o tratamento de Cha­gas em adultos em três distritos de Cochabamba na Bolívia, onde 10% da população está infectada.
      Apesar de MSF sustentar a necessidade de uso dos medicamentos atuais, sabemos ser fundamental o desenvolvimento de melhores tratamentos, com menos efeitos adversos, melhor posologia e menor duração, para facilitar a adesão. Além disso, novas tecnologias são necessárias para tornar a terapia segura para gestantes e puérperas e permitir seu amplo uso para crianças e adultos.
Dos investimentos feitos em pesquisa para doença de Chagas, direcionou-se apenas uma pequena porcentagem dos recursos para desenvol­vimento de tecnologias de uso imediato, enquan­to a grande maioria foi alocada para pesquisa básica. Isto reflete a necessidade de incentivos complementares para permitir que descobertas científicas se traduzam em benefícios diretos para a população afetada. Em 2006, a OMS publicou o relatório da Comissão de Propriedade Intelec­tual, Inovação e Saúde Pública (CIPIH), no qual se demonstrou que o atual sistema de patentes não é suficiente para incentivar a pesquisa de doenças que afetam apenas países em desenvolvimento. Doenças que não representem um mercado atra­tivo não são alvo da pesquisa e desenvolvimento.
Em 2009, no ano do centenário da descoberta da doença, reconheceu-se sua relevância ao ser adicionada à agenda da Assembleia Mundial da Saúde, a qual reúne os ministros de Saúde dos países membros da OMS. Uma semana antes das negociações houve recuo e perdeu-se esta grande oportunidade para o comprometimento dos países em reforçar a luta contra Chagas.
 É fundamental avançar na ampliação do acesso a diagnóstico e tratamento, e na sua integração à atenção primária. O adiamento da
discussão do tema em âmbito internacional evidencia que Chagas não é apenas uma doença silenciosa, mas também silenciada.                                                        




domingo, 20 de janeiro de 2013

Ao Brasil, notícias da fome na Etiópia


 

Artigo publicado na Folha de São Paulo
 
David Oliveira de Souza

 
É CONSENSO para organizações internacionais como Unicef e FAO (Fundo das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação) que a produção mundial de alimentos é mais que suficiente para cobrir as necessidades terrestres. Porém, durante a leitura deste artigo, 60 crianças no planeta morrerão de desnutrição e, ao fim do dia, serão quase 20 mil. Na Etiópia, onde trabalho em uma emergência nutricional com Médicos Sem Fronteiras (MSF), todos os dias me pergunto por onde anda a mão invisível e mágica do mercado global, o melhor regulador da economia. Nenhuma das pessoas que vi morrer de fome por aqui parecia conhecê-la.

Em Kambata, no sul da Etiópia, fica bem clara uma das lógicas geradoras de fome.Dedicadas à produção de gengibre para o mercado externo, muitas famílias de pequenos produtores deixaram de produzir comida para consumo próprio, imaginando que, com a venda da colheita, poderiam comprar os insumos necessários a seu sustento. O preço do gengibre, contudo, ficou abaixo do esperado, o custo dos alimentos subiu, agravado pela crise mundial e pelo clima local e, como resultado, a fome chegou.

Crise semelhante se deu no Níger, em 2005, onde à insuficiente produção de subsistência uniram-se a seca e os ataques de gafanhotos à lavoura. Nesse país, onde MSF já cuidou de mais de 500 mil crianças desnutridas, ao mesmo porto de onde partiam navios abarrotados de cereais para exportação chegavam carregamentos de ajuda alimentar para a faminta população local.

Embora o aumento do custo dos alimentos seja um importante fator de crise, é preciso lembrar que ele apenas agrava uma situação crônica. Segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), a desnutrição representa 10% de todas as doenças e já vem sendo há muito tempo negligenciada pela comunidade internacional. De acordo com a Campanha de Acesso a Medicamentos Essenciais, iniciativa de MSF, apenas 3% dos 20 milhões de crianças com desnutrição severa recebem o tratamento recomendado pela ONU.

Quando a escassez de comida é intensa, as famílias reduzem o número de refeições e precisam abrir mão de bens essenciais, como gado e até a própria casa. Se a situação piora, as estruturas da comunidade entram em colapso, aumenta a violência, iniciam-se grandes ondas migratórias e os indivíduos menos valorizados na cadeia produtiva, como meninas e órfãos, tendem à marginalização. O momento final e mais grave ocorre quando há falta absoluta de alimentos, afetando uma grande população por um longo período. Nesse caso, o cenário é desolador, e a mortalidade, altíssima. Em um acelerado processo de degradação humana, parte de um povo vai sendo consumido e sua descendência poderá ter a capacidade cognitiva prejudicada pela falta de acesso aos nutrientes adequados.

Aqui em Kambata, diariamente mais de 3.000 pessoas procuram nossos centros de nutrição. Há dias que precisamos interromper as atividades, com medo de perder o controle da multidão desesperada. Alguns pacientes estão tão fracos que nem conseguem engolir.

É difícil descrever a aparência da fome. A criança desnutrida é triste, parada, tem cara de velhinho e, algumas, por causa da carência protéica, ficam com as pernas e o rosto inchados. Mesmo assim, é possível salvar muitas vidas e, especialmente no caso das crianças, após duas semanas de tratamento, o rosto muda tanto que quase não dá para reconhecer.

Duas identidades me são evocadas no trabalho na Etiópia. A de médico e a de brasileiro. A de médico me faz lembrar que é muitas vezes nos centros de saúde que fenômenos como a fome e a violência mostram sua cara mais feia e que, embora sejam essenciais programas de desenvolvimento para evitar as crises, eles não devem ser feitos em detrimento de respostas emergenciais necessárias. A de cidadão brasileiro me faz desejar que nosso país, que tem produzido algumas tecnologias bem-sucedidas de combate à pobreza e à fome, seja mais proativo em sua política de cooperação com outras nações do Sul. O Brasil que precisa de ajuda também tem condições de ajudar.

Há alguns dias, perdemos Mamushe, uma menina com nove anos, desnutrição severa e ares de princesa etíope. Sempre que Mamushe me perguntava onde era o Brasil, eu respondia: “Longe”. Na madrugada em que tentei reanimá-la, o corpo fraquinho não resistiu e se foi. Ao ouvir o pranto de sua mãe, lembrei-me de uma frase proferida pelo escritor moçambicano Mia Couto na ocasião do tsunami: “Nunca é longe o lugar de onde nos chega um grito de apelo. O sofrimento atingiu também a nós. O vosso luto é o nosso luto”.