domingo, 20 de janeiro de 2013

Que potência queremos ser?

Artigo Publicado na Folha de São Paulo

David Oliveira de Souza

 
Terceira semana de 2010. Em algum lugar da África acaba de amanhecer. Sentada no chão de terra de uma enfermaria humanitária, uma mulher segura um bebê enrolado em panos. Eu e você nos aproximamos e afastamos o tecido com cuidado. Para nossa surpresa, não se trata exatamente de um bebê, mas da menina Therése, de sete anos, tão pequena e magra que não tem forças sequer para engolir. Por sua narina passa um cateter que conduz o alimento diretamente ao estômago.

De quem é a culpa por ela ter chegado a esse estado de desnutrição? De Deus, que não usou suas mãos onipotentes para protegê-la? Da natureza, que não trouxe as chuvas no tempo certo? Do mercado, que permitiu o aumento do preço dos alimentos? Dos países ricos, que negligenciaram a ajuda internacional? Do governo, que não deu apoio à agricultura familiar? Certamente, não de Therése.

A tarde começa e o calor nos incomoda. Estamos agora num povoado do semiárido brasileiro. Na sala escura de uma casa de taipa, vemos Maria preparando o almoço com o que há disponível: água e um punhado de açúcar. As crianças tomam na garapinha algumas calorias e quase nenhum nutriente. Entretidas na bebida açucarada, não chegam a perceber as lágrimas que deslizam pelo rosto de “mainha”. Ela chora porque possui um córtex cerebral humano.

A imagem dos filhos com fome imprime-se em suas retinas, viaja pelo nervo ótico, converte-se em sinal elétrico e espalha-se por milhões de neurônios até chegar ao lobo occipital. Uma cadeia de reações químicas e neuronais chamada emoção é então iniciada. Maria tenta achar uma solução para seus meninos, mas solução não há. Nem comida. Só a sensação de impotência, cada vez mais dolorosa.

Precisamos nos apressar. Ainda temos que chegar a uma megalópole do Sudeste asiático. Chove tanto que eu e você quase escorregamos no lamaçal dos caminhos da favela. A água já invadiu várias casas. Enfim encontramos o barraco onde vivem a menina Abhaiá, seu irmão Gadin e os jovens pais. Com a chegada da noite, apagam-se as distrações que enganaram o estômago das crianças durante o dia. Abhaiá e Gadin pedem comida.

O pai tem matado a fome e a humilhação com as calorias vazias do álcool. Para a mãe, o momento é de solidão e assombro. Ela tenta acalmar os filhos com pedacinhos inventados de esperança, jogos de cena. “Meus amores, vou botar a panela no fogo, já já nossa janta fica pronta.” E vai soltando pedras e gravetos dentro do tacho de água fervente enquanto sussurra uma prece: “Tende piedade, senhor. Fazei com que minhas crianças adormeçam enquanto esperam”.

 As pessoas que acabamos de visitar são reais e, em 2009, pela primeira vez na história seu número superou a marca de 1 bilhão de seres humanos.

A segurança alimentar existe quando toda pessoa, em qualquer tempo e lugar, tem condições de acesso a uma alimentação saudável e em quantidade suficiente para cobrir suas necessidades diárias. A alimentação é um direito humano básico que possui uma característica peculiar: quanto mais privado dele se está, menor é a capacidade de um indivíduo conseguir lutar para fazê-lo cumprir-se. Cada punho que se ergue, cada grito de clamor, cada passo que avança em busca de justiça depende da existência de calorias, nutrientes e células humanas em bom funcionamento nos corpos de seus executores.

Não é à toa que dentre os sinais da desnutrição estão a imobilidade, a expressão apática, a ausência de brilho no olhar e a incapacidade de reagir a estímulos. A fome tende a ser uma dor silenciosa e, por isso, escondida em muitos lugares do planeta.

Durante a última cúpula mundial sobre segurança alimentar, em Roma, os Estados adotaram uma declaração propondo estratégias e ações para erradicar a fome no mundo. Infelizmente, o texto carece de objetivos quantificáveis e prazos precisos, o que faz dele um compromisso inconsistente. Ademais, quase nenhum dos líderes do G8, em tese os principais financiadores das ações propostas na declaração, compareceu ao encontro.

Por todos os cantos do planeta, sopram ventos de um Brasil potência. Tanto otimismo não deve sufocar a necessidade de reflexão que esse momento de crescimento impõe. Como potência, aumenta nossa responsabilidade diante dos gritos da Terra e do sofrimento de pessoas como Maria, Therése, Abhaiá e Gadin.
Como potência, somos chamados a pensar paradigmas cada vez mais comprometidos de ajuda humanitária e desenvolvimento internacional e a procurar por eles inclusive nos programas de governo dos candidatos à Presidência da República.

Como potência, quanta falta nos fará a doutora Zilda Arns! Roma decepcionou com a segurança alimentar, Copenhague fracassou com o clima. Fica valendo para o Brasil a velha pergunta feita a tantos pequeninos: O que você vai fazer quando crescer?

 

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