Artigo Publicado na Folha de São Paulo
David Oliveira de Souza
David Oliveira de Souza
Terceira
semana de 2010. Em algum lugar da África acaba de amanhecer. Sentada no chão de
terra de uma enfermaria humanitária, uma mulher segura um bebê enrolado em
panos. Eu e você nos aproximamos e afastamos o tecido com cuidado. Para nossa
surpresa, não se trata exatamente de um bebê, mas da menina Therése, de sete
anos, tão pequena e magra que não tem forças sequer para engolir. Por sua
narina passa um cateter que conduz o alimento diretamente ao estômago.
De quem é a
culpa por ela ter chegado a esse estado de desnutrição? De Deus, que não usou
suas mãos onipotentes para protegê-la? Da natureza, que não trouxe as chuvas no
tempo certo? Do mercado, que permitiu o aumento do preço dos alimentos? Dos
países ricos, que negligenciaram a ajuda internacional? Do governo, que não deu
apoio à agricultura familiar? Certamente, não de Therése.
A tarde
começa e o calor nos incomoda. Estamos agora num povoado do semiárido
brasileiro. Na sala escura de uma casa de taipa, vemos Maria preparando o
almoço com o que há disponível: água e um punhado de açúcar. As crianças tomam
na garapinha algumas calorias e quase nenhum nutriente. Entretidas na bebida
açucarada, não chegam a perceber as lágrimas que deslizam pelo rosto de
“mainha”. Ela chora porque possui um córtex cerebral humano.
A imagem
dos filhos com fome imprime-se em suas retinas, viaja pelo nervo ótico,
converte-se em sinal elétrico e espalha-se por milhões de neurônios até chegar
ao lobo occipital. Uma cadeia de reações químicas e neuronais chamada emoção é
então iniciada. Maria tenta achar uma solução para seus meninos, mas solução
não há. Nem comida. Só a sensação de impotência, cada vez mais dolorosa.
Precisamos
nos apressar. Ainda temos que chegar a uma megalópole do Sudeste asiático.
Chove tanto que eu e você quase escorregamos no lamaçal dos caminhos da favela.
A água já invadiu várias casas. Enfim encontramos o barraco onde vivem a menina
Abhaiá, seu irmão Gadin e os jovens pais. Com a chegada da noite, apagam-se as
distrações que enganaram o estômago das crianças durante o dia. Abhaiá e Gadin
pedem comida.
O pai tem
matado a fome e a humilhação com as calorias vazias do álcool. Para a mãe, o
momento é de solidão e assombro. Ela tenta acalmar os filhos com pedacinhos
inventados de esperança, jogos de cena. “Meus amores, vou botar a panela no
fogo, já já nossa janta fica pronta.” E vai soltando pedras e gravetos dentro
do tacho de água fervente enquanto sussurra uma prece: “Tende piedade, senhor.
Fazei com que minhas crianças adormeçam enquanto esperam”.
As pessoas que acabamos de visitar são reais
e, em 2009, pela primeira vez na história seu número superou a marca de 1
bilhão de seres humanos.
A segurança
alimentar existe quando toda pessoa, em qualquer tempo e lugar, tem condições
de acesso a uma alimentação saudável e em quantidade suficiente para cobrir
suas necessidades diárias. A alimentação é um direito humano básico que possui
uma característica peculiar: quanto mais privado dele se está, menor é a
capacidade de um indivíduo conseguir lutar para fazê-lo cumprir-se. Cada punho
que se ergue, cada grito de clamor, cada passo que avança em busca de justiça
depende da existência de calorias, nutrientes e células humanas em bom
funcionamento nos corpos de seus executores.
Não é à toa
que dentre os sinais da desnutrição estão a imobilidade, a expressão apática, a
ausência de brilho no olhar e a incapacidade de reagir a estímulos. A fome
tende a ser uma dor silenciosa e, por isso, escondida em muitos lugares do
planeta.
Durante a
última cúpula mundial sobre segurança alimentar, em Roma, os Estados adotaram
uma declaração propondo estratégias e ações para erradicar a fome no mundo.
Infelizmente, o texto carece de objetivos quantificáveis e prazos precisos, o
que faz dele um compromisso inconsistente. Ademais, quase nenhum dos líderes do
G8, em tese os principais financiadores das ações propostas na declaração,
compareceu ao encontro.
Por todos
os cantos do planeta, sopram ventos de um Brasil potência. Tanto otimismo não
deve sufocar a necessidade de reflexão que esse momento de crescimento impõe.
Como potência, aumenta nossa responsabilidade diante dos gritos da Terra e do
sofrimento de pessoas como Maria, Therése, Abhaiá e Gadin.
Como potência, somos chamados a pensar paradigmas cada vez mais comprometidos de ajuda humanitária e desenvolvimento internacional e a procurar por eles inclusive nos programas de governo dos candidatos à Presidência da República.
Como potência, somos chamados a pensar paradigmas cada vez mais comprometidos de ajuda humanitária e desenvolvimento internacional e a procurar por eles inclusive nos programas de governo dos candidatos à Presidência da República.
Como
potência, quanta falta nos fará a doutora Zilda Arns! Roma decepcionou com a
segurança alimentar, Copenhague fracassou com o clima. Fica valendo para o
Brasil a velha pergunta feita a tantos pequeninos: O que você vai fazer quando
crescer?
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