Artigo publicado na Folha de
São Paulo
David Oliveira de Souza
A
DECLARAÇÃO Universal dos Direitos Humanos afirma que toda pessoa tem direito à
vida e à liberdade. No entanto, a invocação desses direitos torna-se ineficaz
em uma sociedade que não é capaz de defender seus cidadãos ou que decidiu
excluir ou eliminar alguns deles.
Homens,
mulheres e crianças vivendo em situação de rua têm sido vítimas de atos
sistemáticos de extermínio. Trata-se de um desafio humanitário, que desperta
indignação e pede ações imediatas de proteção à vida e à dignidade dessas
pessoas.
O número de
indivíduos vivendo em situação de rua nos centros urbanos dos países pobres só
tem aumentado. Segundo o Fundo de População das Nações Unidas, nas próximas
duas décadas, esses países concentrarão 80% da população urbana do planeta -e,
com ela, a população de rua. Em uma época do ano em que é tão evocada a
história da família sem teto, cujo bebê precisou nascer na manjedoura de Belém,
convém lembrar a urgência de políticas públicas efetivas para essa população.
A
experiência da organização Médicos Sem Fronteiras (MSF) com moradores de rua em
diversos continentes e culturas mostra que são múltiplos os fatores que levam à
vida nas ruas. Desde furacões e enchentes até causas estruturais, como a atual
crise financeira. No Brasil, segundo o Ministério do Desenvolvimento Social e
Combate à Fome, 71% dos moradores de rua trabalham e só 16% sobrevivem
exclusivamente como pedintes.
Atuar como
médico na rua permitiu-me enxergar essa população pelo viés da saúde. Para
começar, fica difícil usar a semiologia médica clássica.
Quem mora
na rua muitas vezes não sabe dizer se emagreceu, pois usa roupas doadas e fora
do tamanho. Não sabe há quanto tempo surgiu uma lesão de pele, pois raramente
se olha no espelho. Não sabe se o calafrio que teve foi da febre ou do vento da
noite.
Quem vive
na rua dificilmente é coberto pela lógica territorial dos programas de saúde da
família, costuma ter alimentação incerta, problemas para beber água limpa,
falta de acesso a locais para banho, relações sexuais e necessidades
fisiológicas, além de estar muito exposto à violência. O medo de ser eliminado
leva muitas pessoas das ruas a se sentirem adoecidas e habita seu imaginário.
As chacinas da Candelária e de São Paulo agravaram esses sentimentos. Lembro-me
bem de Marcelo, morador de rua de quem cuidávamos em uma praça do Rio no
período em que moradores de rua eram covardemente assassinados em São Paulo. No
dia seguinte a uma das mortes, Marcelo não quis nem conversar com a equipe de
MSF e mantinha os ouvidos grudados no radinho de pilha, escutando o noticiário
paulista. Só conseguia dizer com os olhos arregalados: “Doutor, já pensou se
isso chega aqui?”.
O olhar que
os transeuntes dirigem a quem mora na rua é outro motivo de sofrimento. Pode
ser de medo, raiva, piedade e, sobretudo, o não-olhar. Raramente é um olhar que
busca interagir em regime de igualdade.
Em
Honduras, após um jogo de futebol semanal que a equipe do projeto de MSF faz
com os meninos que vivem nas ruas de Tegucigalpa, um dos garotos disse: “Sabe o
que é mais legal desse jogo? É que quem passa de ônibus e vê a gente pensa que
somos só meninos jogando bola na praça. Nem imagina que vivemos nas ruas”.
O povo da
rua procura se adaptar aos efeitos perversos que tantas privações imprimem em
seu corpo. Uma dessas adaptações é o silenciamento dos sintomas, acompanhado da
desesperança crônica de ser cuidado.
Cala-se
então o corpo, que não deve mais doer, que não deve mais sentir, ainda que
esteja muito doente. Nesse momento, se perguntarmos a um morador de rua com
tosse e dor como ele está de saúde, ele responderá: bem.
O
assistencialismo higienista tem permeado as ações governamentais voltadas para
a população em situação de rua ao longo dos anos. Tal lógica não responde ao
complexo desafio de reinserção dessas pessoas nas dimensões da sociedade das
quais estão apartadas, como trabalho, moradia, família, cultura, lazer e saúde.
Atualmente,
está disponível para consulta pública a Política Nacional para Inclusão Social
da População em Situação de Rua. É um esperado instrumento de acesso à
cidadania e uma vitória dos movimentos sociais.
Infelizmente,
as manjedouras urbanas estão crescendo e, até agora, ainda têm sido poucos os
anjos e pastores dispostos a visitá-las. Que os reis magos espalhados pelo
mundo esqueçam o incenso, a mirra e o ouro e tragam as políticas públicas.
Pelas
metrópoles do planeta, há famílias inteiras que vivem nas ruas há mais de três
gerações. Outras não puderam ter filhos pois tiveram as vidas ceifadas por
“justiceiros”. Anteontem, no Espírito Santo, uma moradora de rua foi atacada
enquanto dormia e acordou em chamas com seu companheiro. A moça morreu ao
chegar ao hospital. Dedico a ela este artigo.
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